José e o pé de Gizé pt. 4

Foi mais ou menos neste período da infância que José sofreu com seu segundo problema grave de saúde (o primeiro foi ter chegado ao mundo adiantado). Era de tarde. José estava em casa, muito ocupado desenhando. Não havia aula no dia e bem que poderia tocar marrom bombom na rádio que ele não se importaria, quiçá, até cantasse junto? Sentiu uma coceira discreta no topo da cabeça. Coçou com gosto e vontade, aliviando-se. Foi a mãe quem percebeu, com o passar dos dias, que o menino não parava de coçar. Poderia ser piolho. Mexeu, olhou, procurou e não achou. Indicando com a pontinha do dedo, foi mesmo José quem mostrou: aqui óh, bem aqui. Então, a mãe sentiu. Era um inchaço arredondado bem no couro cabeludo. Tinha que ir ao médico.

José Oswaldo era o seu pediatra. José, o que não era Oswaldo, achava graça, pois, apesar de discrepantes na altura e na idade, tinham algo tão íntimo em comum, como o próprio nome.

Em todas as idas e vindas ao consultório, José esforçava-se um bocado para não se distrair durante as consultas. Sentado na cadeira de frente à mesa do médico, parecia até gente grande, se a mãe não estivesse ao lado. Tudo ao redor lhe chamava a atenção, começando pelas quatro paredes azuis turquesa do consultório. De tudo aquilo, o que mais atraía seu olhar era a pintura pendurada na parede, bem atrás do médico: um céu noturno, iluminado e distorcido, muito difícil não admirar. Perdia-se em pensamentos profundos, assimilando cores e formas daquela pintura impressionante, enquanto José, que era Oswaldo, lhe fazia perguntas que José tentava entender. Apesar de não saber ler as palavras, o menino transformava em poesia todas as imagens que lia.  

Com o tempo, a ferida na cabeça de José cresceu, assim como a preocupação de sua família. Ele mesmo não entendia, nem dor sentia, só sabia que não devia ser coisa pouca. Não demorou muito para receberem o diagnóstico: Kerion Celsi, de acordo com o google, uma manifestação grave da Tinea capitis resultante de uma intensa resposta imune à infecção causada pelo fungo Microsporum canis. Até aquele momento, segundo contam, não havia registros da doença no Brasil, logo, José seria o primeiro. Sentiu-se um sortudo azarado, tanta coisa para ser único, tinha que ser logo doença, ele pensava.

Parecia Grey’s Anatomy. Médicos residentes de São Paulo foram ao interior de Minas analisar o caso de perto. Teve fofoca da vizinha, que contou para a vizinha que o filho da vizinha que apareceu na tv, estava acamado de coisa rara, que ia morrer; um tipo de piolho anômalo, ouvi dizer. Os mais chegados, rezaram novena do menino Jesus e acenderam vela para Seu Bentinho, na tentativa de reverter o irreversível.

José nunca se esqueceu do dia em que fez a cirurgia. Também, como esquecer, operar logo a cabeça. Com a promessa de que ganharia o palhaço de pano que vira na vitrine da loja no outro dia, concordou com a operação, como se houvesse essa escolha. Apesar da aparente falha nos cabelos encaracolados de José, a cirurgia havia corrido muito bem, obrigado. Até porque, não era de tudo tão sério. Alívio geral. O menino feliz com seu brinquedo novo, carregou por toda a vida a cicatriz escondida no topo da cabeça.

Até onde se soube, na vida adulta José guardava em sua carteira o desenho feito por ele na infância, ilustrando o consultório do pediatra: a cadeira, a mesa, o médico e a pintura A Noite Estrelada, de Vicent van Gogh, pendurada na parede. Carregava com ele, pois, quem sabe um dia, José adulto não encontraria com o José Oswaldo caminhando pela rua e, após um oi e um bom dia, lhe daria, finalmente, o desenho que o José menino fez para o presentear, mas que nunca conseguira entregar?  

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(continua…)

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