José e o pé de Gizé pt. 4

Foi mais ou menos neste período da infância que José sofreu com seu segundo problema grave de saúde (o primeiro foi ter chegado ao mundo adiantado). Era de tarde. José estava em casa, muito ocupado desenhando. Não havia aula no dia e bem que poderia tocar marrom bombom na rádio que ele não se importaria, quiçá, até cantasse junto? Sentiu uma coceira discreta no topo da cabeça. Coçou com gosto e vontade, aliviando-se. Foi a mãe quem percebeu, com o passar dos dias, que o menino não parava de coçar. Poderia ser piolho. Mexeu, olhou, procurou e não achou. Indicando com a pontinha do dedo, foi mesmo José quem mostrou: aqui óh, bem aqui. Então, a mãe sentiu. Era um inchaço arredondado bem no couro cabeludo. Tinha que ir ao médico.

José Oswaldo era o seu pediatra. José, o que não era Oswaldo, achava graça, pois, apesar de discrepantes na altura e na idade, tinham algo tão íntimo em comum, como o próprio nome.

Em todas as idas e vindas ao consultório, José esforçava-se um bocado para não se distrair durante as consultas. Sentado na cadeira de frente à mesa do médico, parecia até gente grande, se a mãe não estivesse ao lado. Tudo ao redor lhe chamava a atenção, começando pelas quatro paredes azuis turquesa do consultório. De tudo aquilo, o que mais atraía seu olhar era a pintura pendurada na parede, bem atrás do médico: um céu noturno, iluminado e distorcido, muito difícil não admirar. Perdia-se em pensamentos profundos, assimilando cores e formas daquela pintura impressionante, enquanto José, que era Oswaldo, lhe fazia perguntas que José tentava entender. Apesar de não saber ler as palavras, o menino transformava em poesia todas as imagens que lia.  

Com o tempo, a ferida na cabeça de José cresceu, assim como a preocupação de sua família. Ele mesmo não entendia, nem dor sentia, só sabia que não devia ser coisa pouca. Não demorou muito para receberem o diagnóstico: Kerion Celsi, de acordo com o google, uma manifestação grave da Tinea capitis resultante de uma intensa resposta imune à infecção causada pelo fungo Microsporum canis. Até aquele momento, segundo contam, não havia registros da doença no Brasil, logo, José seria o primeiro. Sentiu-se um sortudo azarado, tanta coisa para ser único, tinha que ser logo doença, ele pensava.

Parecia Grey’s Anatomy. Médicos residentes de São Paulo foram ao interior de Minas analisar o caso de perto. Teve fofoca da vizinha, que contou para a vizinha que o filho da vizinha que apareceu na tv, estava acamado de coisa rara, que ia morrer; um tipo de piolho anômalo, ouvi dizer. Os mais chegados, rezaram novena do menino Jesus e acenderam vela para Seu Bentinho, na tentativa de reverter o irreversível.

José nunca se esqueceu do dia em que fez a cirurgia. Também, como esquecer, operar logo a cabeça. Com a promessa de que ganharia o palhaço de pano que vira na vitrine da loja no outro dia, concordou com a operação, como se houvesse essa escolha. Apesar da aparente falha nos cabelos encaracolados de José, a cirurgia havia corrido muito bem, obrigado. Até porque, não era de tudo tão sério. Alívio geral. O menino feliz com seu brinquedo novo, carregou por toda a vida a cicatriz escondida no topo da cabeça.

Até onde se soube, na vida adulta José guardava em sua carteira o desenho feito por ele na infância, ilustrando o consultório do pediatra: a cadeira, a mesa, o médico e a pintura A Noite Estrelada, de Vicent van Gogh, pendurada na parede. Carregava com ele, pois, quem sabe um dia, José adulto não encontraria com o José Oswaldo caminhando pela rua e, após um oi e um bom dia, lhe daria, finalmente, o desenho que o José menino fez para o presentear, mas que nunca conseguira entregar?  

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(continua…)

José e o pé de Gizé pt. 3

Aos 4 anos, José concluiu a pré-escola. No último dia de aula, sentiu-se inteligente, tirando foto com os colegas. Para a ocasião, vestiu roupa bonita, cabelo com brilhantina, gravata borboleta e sapatênis, todo ajeitadinho para aparecer ao lado da professora. Abraçou os coleguinhas, disse tchau, sem entender para onde iria, mas entendia que, naquele momento, havia crescido mais um cadinho.

Por volta de 1995, estourou a promoção dos Geloucos, da Coca-Cola; os Tazos, que vinham dentro dos pacotes de Cheetos; brinquedos do Kinder Ovo, que devia custar R$1,00; as lojas de R$1,99, onde José comprava 5 brinquedos por R$10,00. Nesse contexto, ele foi para uma escola nova; você está na 1ª série, sua mãe dizia. Se aquela era a primeira, quantas será que seriam?, ele se perguntava de volta. Tudo parecia ser um tanto diferente; não havia mais xuxu na cerca para catar, nem viveiro de coelhos para visitar. Em compensação, podia comer de graça todos os dias na escola, e repetia toda vez que o arroz era doce.

Nessa época, fazia muito sucesso a música Marrom Bombom, do grupo Os Morenos. Ela tocava todos os dias na rádio, exatamente na hora do almoço – meio dia e pouca -, horário em que José tinha que ir para a escola. Apesar de simpatizar com a melodia da música e gostar muito de comer bomboms, ele sentia um gosto amargurado toda vez que a música tocava, pois, sabia que teria que ir à aula. Desejava secretamente ficar em casa, assistindo a programação da TV Cultura – Glub-Glub; O Pequeno Urso; Castelo Rá-Tim-Bum; Senta que Lá Vem a História…

Em um atípico dia de aula, uma equipe de televisão foi na escola nova de José para gravar uma matéria sobre os cuidados com a higiene bucal (pois, claro, qual criança crescida na década de 90 que estudou em escola pública e nunca passou flúor na boca? Deixa aí nos comentários.) No dia marcado, todas as crianças sorrindo azulado, alvoroçadas com a chegada da equipe de tv; as professoras como nunca haviam visto; de cabelos soltos e boca pintada  – evento novo na cidade – , uma equipe de televisão com filmadora, microfone, gravata e tudo mais.

As crianças fizeram fila e marcha, cantaram o hino nacional com um palmo de distância, enquanto estendia-se a bandeira do Brasil. Quando o moço da tv perguntou quem quer dar uma entrevista?, foi um alvoroço geral. Em meio à gritaria, José não pensou duas vezes: aparecido que era, esperou apaziguar a algazarra e, na beirada do silêncio, falou em alto tom: EU SEMPRE QUIS APARECER NA TELEVISÃO!!! Com um sorriso de canto no rosto, o moço fitou o menino. Seria a primeira vez que José apareceria na tv.

No dia em que a reportagem foi ao ar, a família de José se reuniu toda na casa dos avós. Teve churrasco com bavaria, a cerveja dos amigos, guaraná Taí para a criançada e gelatina com leite moça de sobremesa. Passava na televisão um filme em preto e branco de um navio que afundou: “Titanic”. Que demora para afundar, pensava José, paralisado na frente da tv, esperando o jornal começar. Quando entrou a reportagem no ar, ele finalmente apareceu, em meio segundo dizendo gostei muito! José não gostou nada.

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(continua…)

José e o pé de Gizé pt. 2

Essa é a história da serpente que desceu o morro para procurar um pedaço do seu rabo.

Na escola, José gostava do fato de que seu primeiro nome começava com a letra A (José era o segundo). Seu número de chamada seria o 1 durante toda a vida. Sempre saberia, sem problemas, a hora certa de dizer “presente”.

Nos primeiros dias de aula, ele não interagia tanto com os colegas de classe, especialmente na hora do recreio. Sentado no banco largo de madeira, comia sozinho seu mirabel tomando toddynho, saboreando o ligeiro momento de sossego sabor morango e chocolate. Depois, andava pelos becos e cantos da escola; catava xuxu que crescia na cerca para levar de presente para a mãe fazer almoço, motivo pelo qual seus pais sempre o chamaram de “xuxu”.

Certa vez, enquanto todos se prepraravam para entrar na sala, José viu a professora passar apressada pelo corredor segurando sua pasta transparente na mão. Mesmo de longe e, durante uma fração de segundos, ele conseguiu pescar pelo olhar a atividade que seria dada naquela aula. Os alunos ainda não sabiam escrever; aprendiam a fazer traços e formas. Era exatamente essa:

Quando a aula começou, José já estava preparado. Sentado na primeira carteira, levantou a mão dizendo que sabia o que seria ensinado. A professora surpresa, tanto quanto duvidosa, pediu para a criança ir ao quadro, dando-lhe um cotoco de giz. José sentiu-se tão importante segurando aquele pedacinho de fazer escritas nas mãos. Foi ao quadro e desenhou a forma, exatamente como havia gravado na memória. Incrédula, tanto quanto orgulhosa, a professora reconheceu a esperteza do aluno, que recebeu uma salva de palmas da turma.

O que José mais gostava na escola era visitar o viveiro de casal de coelhos que lá tinha. Foi assim que ele encontrou a prematura cria que havia acabado de nascer. Achou estranho, umas coisas todas gosmentas se mexendo; foi logo correndo contar para a professora que se demonstrou surpresa com a esperteza do menino: salvou os filhotinhos, disse. Tal reconhecimento fez com que José conquistasse o título de herói e, assim, seus primeiros amigos na escola. Avesso às verduras, o fato também estimulou nele o momentâneo desejo de comer mais cenouras, motivo de alívio para seus pais.

José só saía na rua de mãos dadas com a mãe. Sentia-se seguro e, de quando vez, conversava com ela sem usar as palavras, mas apertando as mãos, como em código morse. No caminho da casa para a escola; e vice e versa, pisavam em todas as folhas secas caídas ao chão – barulhinho gostoso e crocante – e tudo em volta chamava a sua atenção. José saía pegando tudo que encontrava jogado na rua para dar de presente para quem ele gostava; flor no jardim, chiclete mascado; em certa ocasião, vaso de flor de cemitério. Uma vez, encontrou um belo par de brincos dourados, ao lado de pratos com comidas coloridas e garrafas de bebidas. Não pensou duas vezes. Levou o par de brincos de presente para a professora da escola, inocente e feliz, como um erê. Ou era oferenda, ou despacho; soube anos depois.

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(continua…)

José e o Pé de Gizé

Quando tinha três anos de idade, a mãe de José o levou à Biblioteca. Ele pôde escolher o primeiro livro de sua vida para levar para casa. Como ainda não sabia ler, escolheu logo um que não tinha palavras. Era a história de um urso solitário que conversava com a lua. Foi assim que José aprendeu à olhar para o céu.

O ano de 1988 foi contemplado com 13 luas cheias e 12 luas novas. José chegou neste mundo no dia de Santa Clara de Assis, Oyá-Tempo, 11 de agosto de 1988, às 7h02 da manhã, na passagem da lua minguante para a nova, um pouco adiantado para o inesperado; pesando 2k330g e 46cm; magrinho, direto para a incubadora. Não aceitou o peito da mãe por dias. Sua bisavó olhava franzino para ele, dizendo que “não ia vingar”. Mas vingou. Aos 16 dias de idade, houve na terra o primeiro eclipse lunar na vida existente de José.

Foi em outubro de 89 que ele aprendeu a andar sozinho. Daí, não parou mais. Gostava de caminhar descalço, usando apenas fraldas e a chupeta pendurada no pescoço, feito um cordão (se não, perdia). Os vizinhos da rua o chamavam de “fraldinha”;  ele não ligava, (talvez, porque não entendia). Mas, era difícil para sua mãe fazer a criança parar sossegada naquelas roupas bem passadas. Quando aposentou-se das fraldas, foi difícil fazê-lo usar cuecas – algo que não fez, até a sua vida adulta.

Desde a infância, José interessava-se por tudo aquilo que fosse coisa diferente, miúda ou grande. Fazia seus próprios brinquedos, sozinho por horas à fio, viajando universos e planetas, dentro de uma caixa de papelão – geladeira nova que o pai comprara; fogão brastemp ou bicicleta da caloi. Sua mãe gabava-se tanto disso; não dos eletrodomésticos, mas do fato de José saber se divertir com coisa pouca, usando apenas a sua capacidade de imaginar.

Com três anos; José foi para a pré-escola. Chorava muito em seu primeiro dia de aula; não entendia e nem queria. Para ele, não teve outro jeito. Enfiou o rabo entre as pernas, chegando atrasado e envergonhado na sala de aula; a turma toda sentada nas carteiras enfileiradas fitando-o de volta. Quando pediu para ir ao banheiro pela primeira vez, estava apertado para fazer cocô. Achou tudo tão estranho e gelado; sentiu saudades do aconchego do lar. Lá sentado, esqueceu-se da vida, nada mais natural na situação em que se encontrava ~ pensativo. Deslembrando-se que não estava em sua casa, levou um susto (que jamais se esqueceria), quando o silêncio discreto fora interrompido pelo grito repentino da menina que dizia: a pro-fes-so-ra man-dou vol-tar. Coitado, pois, ainda nem terminara. Outra vez com o rabo entre as pernas, José entrou sem graça na sala de aula, esforçando-se um tanto para segurar à vontade que o sistema já lhe cortara.

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(continua…)

A Morte do Poeta Vitalício: Poesias nas escolas, na rede e nas bibliotecas.

<< ALERTA DE POESIA NA SUA TELA >>
No final do ano passado, meu livro de poesias “A Morte do Poeta Vitalício” foi contemplado com o Prêmio CultLeo de incentivo aos artistas leopoldinenses, viabilizado pela Prefeitura Municipal de Leopoldina, através da Lei Aldir Blanc de apoio à cultura. Agora, a versão digital do livro está disponível para download e pode ser baixado em qualquer celular ou computador 🙂

Por meio do incentivo, as escolas municipais e estaduais, bem como bibliotecas e centros culturais de Leopoldina e seus distritos, serão contempladas com 90 exemplares do livro, junto com uma cartilha didática, descentralizando e democratizando o acesso a leitura e a literatura contemporânea e valorizando, ao mesmo tempo, uma obra literária escrita por autor local.

Meus sinceros agradecimentos à Lei Aldir Blanc, através da Secretaria Especial da Cultura, bem como pela criação do Prêmio CultLeo de incentivo aos artistas leopoldinenses, pela Secretaria Municipal de Cultura de Leopoldina. Agradeço, ainda, o apoio da Superintendência Regional de Ensino de Leopoldina por tornar possível!

Para baixar, acesse o site: https://poetavitalicio.wordpress.com/

Realização: Editora e Produtora Bergamota
Incentivo: Lei Aldir Blanc – Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal – Prefeitura Municipal de Leopoldina – Secretaria Municipal de Cultura de Leopoldina.
Apoio: SRE – Superintendência Regional de Ensino de Leopoldina.

Cartas de Passagem Para Uma Nova Década

Cartas de Passagem Para Uma Nova Década

Faz quanto tempo que você não recebe uma carta pelo correio? 

Esperar o carteiro chegar com uma cartinha endereçada para si, que viajou, transladou e, finalmente, chegou para te encontrar… a ansiedade da espera, o delírio de rasgar, sem maltratar, o envelope, sentindo o cheiro do papel – pelo -, tato da caligrafia.

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Entre processos e cartografias – passagens para uma nova era -, é do gosto do Poeta Vitalício enviar-te uma carta, sem a obrigatoriedade de sua resposta, apesar de muito querida.

Para ser destinatário do poeta, deixe seu nome e endereço completo como comentário nesta publicação ou, se preferir, nos envie os dados através do e-mail poeta.vitalicio@gmail.com.

Durante o período de desdobramento, entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, você receberá uma cartinha e um cartão postal do Poeta Vitalício. Caso queira adquirir o livro, que é opcional, basta comprá-lo neste link da lojinha e a cartinha e o cartão serão encaminhados, junto com uma ilustração feita à mão.

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Para todos aqueles que já adquiriram o livro A Morte do Poeta Vitalício, tornaram-se, automaticamente, destinatários do Poeta e tiveram suas cartinhas postadas aos 19 dias do mês de dezembro do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2019. Se você é um deles, agora é só aguardar 🙂

Desejamos à todxs uma próspera passagem poética n’este ano vindouro.

P.V.

Sarau Literário na casa do Poeta Augusto dos Anjos

No dia 09 de novembro aconteceu uma manhã deliciosa na casa do poeta Augusto dos Anjos, durante o Sarau Literário do mês de novembro, promovido pela Academia Leopoldinense de Letras e Artes.

Na ocasião, pude apresentar meu livro “A Morte do Poeta Vitalício”, conversando sobre o processo criativo da escrita. Agradeço a troca e participação dos alunos da Escola Estadual Professor Botelho Reis e da professora Terezila. Agradeço a ALLA pela oportunidade, em especial, Dr. Ronald Alvim Barbosa, Ana Cristina Fajardo e Glaucia Maria de Oliveira. 📖🌻

Bendito é o Fruto

Plantar,

Colher.

Planar,

Correr.

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+ A MORTE DO POETA VITALÍCIO +

Ficha Técnica:

Editora Bergamota
ISBN: 978-1983092213
Copyright © 2019 Alan V. Barroso.
Todos os direitos reservados.
Projeto Gráfico, capa e ilustrações: A. V. Barroso.
Texto da orelha: P. R. Cunha.
Revisão: A. Blair.

Escute a trilha sonora: http://abre.ai/trilha-sonora
Facebook: fb.me/poetavitalicio
#poesia #poetry #poetavitalicio #literatura

EMERGENTE – ATESTADO DE ÓRBITA

EMERGENTE – ATESTADO DE ÓRBITA
Comunicamos, a quem não interessar prosa, “A Morte do Poeta Vitalício”: o fardo de um bardo; navegante em rio de passagem, avante ao padecimento lírio, em sua vital existência poética. Neste atestado de órbita, o autor narra dor e cor; purifica-se no delíquio da poesia. “Amor ou a Morte? Amar ou à Marte?” (VITALÍCIO, Poeta).
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15/08/2019 / LANÇAMENTO DIGITAL: “A Morte do Poeta Vitalício: Narrativas de um Padecimento Poético”, nas Lojas Kindle, da Amazon. A narrativa poética desdobra-se em experiência sonora na trilha original do livro, disponível em todas as plataformas digitais de música.

Leia a resenha literária, escrita por P. R. Cunha, autor de “Paraquedas – um ensaio filosófico” (Prémio Aldónio Gomes):

OS FANTASMAS SEMPRE VOLTAM

por

p. r. cunha (julho de 2019)

à primeira vista pode não parecer
mas é isto uma resenha de
a morte do poeta vitalício – narrativas
de um padecimento poético livro de
alan villela barroso que talvez
muito provavelmente seja
a melhor coisa que aconteceu à
poesia brasileira desde os irmãos
de campos (HAROLDO & AUGUSTO)

artista
pesquisador
professor
músico
ilustrador
gosta de pedalar a própria
bicicleta algures
mora em leopoldina-mg
interior
mas perto o bastante
do oceano para sentir
ah, mar
e cia.

alan villela barroso é poeta
e não só

a tranquilidade da morada
poética ou algumas breves reflexões
(à guisa de introdução)
henry david thoreau SÉC. XIX
perturbadíssimo com o barulho da
locomotiva a invadir a simplicidade
eloquente do campo
o espécime literário em busca de
um qualquer esconderijo
longe das balbúrdias industriais
e tantas vezes a frustração
certa impossibilidade de se
encontrar sítio adequado às práticas da
como se costuma dizer
alma

mas feliz aquele
(este é w. wordsworth)
feliz
aquele que se encontra
que consegue dialogar com a própria
geografia e tem/cria tempo
para lutar contra os excessos
contra as explicações pormenorizadas
[toda a gente quer tudo explicadinho
interpretado mastigado]

é fácil imaginar alan debruçado
sobre poesias enquanto a chuva
tamborila despreocupadamente
ao telhado
de sua casa

o poeta que no silêncio estival
lê e escreve
e ensina e olha para o céu
sim amiúde
para o universo
que se expande em
múltiplos versos

escutemos a voz do poeta:

meu mudo
meu canto
meu pedaço de só
(pág. 29)

arranhou o dia
era Sol que me faltava
(pág. 39)

alan
que nos faz lembrar
e matar saudades de
galáxias e das experimentações
de haroldo de campos
isto não é um livro de viagem
alan que também faz dançar
música & poesia
que trilha
sonoramente
(recordemos j. cage
anton von webern
alban berg os gênios
ultrabreves)
a arte radical do silêncio
mesmo que consigamos
ainda
escutar sons

alan
que também alonga os intervalos
faz respiros com ilustrações
traços que não aborrecem
não procuram acrescentar o óbvio
mas antes dialogam & recriam
«pouco em quantidade
muito em qualidade»

a morte do poeta vitalício – narrativas
de um padecimento poético é um livro
sobre a importância de se olhar
às estrelas
ao campo
aos acordes
musicais
para dentro de si

uma biografia da prática
cotidiana das anotações
(do notar [fora] do notar-se
[dentro])
o contato com as naturezas
ondas que vão-e-vêm
os ciclos cósmicos
por vezes tão terrenos

é ir-se sem sair do lugar

a singularidade que se faz sentir
quando o leitor afasta-se
momentaneamente do
padecimento poético
agradável inquietação
questionamentos aos sussurros
como se alan cantasse aos ouvidos
«sugiro-te uma caminhada
aqui fora»

& não seria esta a importância
da poesia
principalmente em tempos
conturbados como estes:
lembrar-nos daqueles
& daquilo que amamos
orientar-nos na tempestade
nos mares
ou nas entranhas do próprio coração?

alan villela barroso
bússola vitalícia
disponível aos náufragos
basta abrir
— ler e ouvir

amar

A Morte do Poeta Vitalício, Alan V. Barroso (2019).

Clique na imagem.

CAPA Dimensões ideias

Trilha Sonora do Livro “A Morte do Poeta Vitalício”.

Clique na imagem.

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Escute a trilha sonora: http://abre.ai/trilha-sonora
Facebook: fb.me/poetavitalicio
#poesia #poetry #poetavitalicio #literatura

SIM, HÁ MAR; ENTÃO NAVEGO

2

Recentemente, completei doze anos deste blog. Não havia me tocado, mas o WordPress fez questão de me lembrar. Continuo acreditando que, o mais importante no processo da escrita, é escrever. E, se possível, não jogar fora. As palavras levam seu tempo para produzir um sentido próprio. Tenha paciência, mas também ciência, é o que me digo. O processo de escrita pressupõe um processo contínuo de leitura (de imagens, de textos; leitura de mundo, como ensinado por Paulo Freire) pois, como navegar pelas marés de um oceano de palavras que buscamos atravessar, sem tripularmos nosso barco com livros e referências? Acredito na relação simbiótica entre o livro e o leitor, que extrapola os limites da leitura. O livro tem sua presença própria, portanto, mantenho-os sempre por perto de mim, mesmo que eu não esteja lendo, distribuo-os pelos cômodos e arredores de minha casa.

Nestes dois últimos anos, embarquei em uma viagem na escrita poética, após anos sem escrever poesia. Foi preciso, primeiro, estudar e conhecer a Lua, para compreender que a vida é feita de marés, altas e baixas. Acompanhei suas fases, observando-a de perto, em silenciosas madrugadas de vistas para o céu. Pois, foi me perdendo entre as constelações e aglomerados de estrelas, que me encontrei, refletido nas águas profundas do próprio amar.

Amanhã completará uma semana que comuniquei formalmente A Morte do Poeta Vitalício. Hoje, convoco a tripulação: amigos, desconhecidos, familiares, não-familiares, à embarcarem na proa do navio do Poeta, que em breve se desdobra. Adiantamos com alegria que, durante a viagem, haverá música pois, existe um trilho sonoro escondido no fundo do mar.

A partida está marcada para às 0 horas do dia 15 de agosto de 2019. Você pode reservar a sua passagem aqui.

amar

A  M O R T E  D O   P O E T A   V I T A L Í C I O

Narrativas de um Padecimento Poético

CAPA Dimensões ideias
Lançamento em 15 de agosto, nas Lojas Kindle, da Amazon, nos formatos E-book e livro impresso. Pré-venda do e-book disponível na Amazon. Clique na imagem.

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Escute a trilha original do livro A Morte do Poeta Vitalício, disponível nas plataformas digitais de música, a partir de 08 de agosto. Pré-venda disponível: Amazon Music, iTunes e Google Play. Clique na imagem.

Escute “Despertar-se”, décima primeira faixa da trilha sonora de A Morte do Poeta Vitalício. Clique na imagem abaixo:Sem títuloCurta a página do Poeta Vitalício no Facebook.

 

EMERGENTE: Amor ou a Morte? Amar ou à Marte?

Comunicamos, a quem não interessar prosa, A Morte do Poeta Vitalício: o fardo de um bardo; navegante em rio de passagem, avante ao padecimento lírio, em sua vital existência poética. Neste atestado de órbita, o autor narra dor e cor; purifica-se no delíquio da poesia.

CAPA Dimensões ideias

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Lançamento do livro no dia 15/08, em formatos físico e digital. Pré-venda do e-book já disponível nas Lojas Kindle, da Amazon, compatível em todos os dispositivos.

Adquira o e-book com desconto na pré-venda, clicando na imagem abaixo:

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Caligrafia de Asfalto disponível na Amazon

O livro Caligrafia de Asfalto, contos e duas dramaturgias, está disponível nos formatos capa comum e E-book nas lojas Kindle, da Amazon. Originalmente publicado em outubro de 2012, através do selo Redondezas Contos, da Editora Multifoco (RJ). Se preferir,  é possível adquirir a versão impressa do livro, atualmente em promoção na loja virtual da Multifoco, clicando aqui.

Escrito entre os anos de 2008 e 2012, Caligrafia de Asfalto é uma antologia de contos e poemas literários, além de duas dramaturgias, incluindo a peça teatral Promete que Jura?, escrita e apresentada, originalmente, na VII Semana de Artes da UFOP, em 27 de maio de 2011, em Ouro Preto, Minas Gerais. Na ocasião, a peça recebeu os seguintes prêmios:

– Melhor Montagem – Júri Popular;
– Melhor Texto Original;
– Melhor Figurino;
– Melhor Iluminação.

SINOPSE: Este livro levou o tempo de uma graduação para ser gerado. Trata-se da experiência de tornar-se pessoa adulta. É a transição da adolescência para um universo marcado por conflitos próprios desta fase da vida. As palavras tornaram-se formas de enfrentamento e compreensão, gestando este livro, onde ficção e realidade se misturam e se confundem harmoniosamente.

DUAS RESENHAS CRÍTICO-LITERÁRIAS:

Resenha Sobre Caligrafias, por Mariana Martins:

Caligrafia de asfalto nos senta no banco do carona para a viagem mais deliciosa e derradeira da vida: a juventude. De forma agridoce, sentimos na pele das palavras a dor de crescer, de partir, de voltar e de sorrir. Nos canta com um carinho fraternal, uma canção que colore o momento onde nós deixamos de apenas sentir desenfreadamente e passamos a ler nossos próprios sentimentos (ainda desenfreados), como quase adultos. Ou quase crianças. Quando os joelhos doem e o calçado já não se encaixa perfeitamente nos pés e ao mesmo tempo, a altura para a montanha-russa ainda não é suficiente: quando a montanha russa é se olhar no espelho. Um livro sobre idas e vindas, descobertas e cobertores, dúvidas e certezas; que evoca em nós qualquer coisa de nostalgia com qualquer coisa de novidade. Sobretudo, qualquer coisa de intensidade. Uma obra tão intensa quanto o próprio amar. Tão intensa que é difícil tocar. Mas onde a fruição permanece.

*

Resenha Caligrafia de Asfalto: um convite ao sentimento, por Hernando Neto, autor do livro ANIMA, Editora Letramento, 2019:

Já são quase 6 meses desde que peguei a primeira cópia digital de “Caligrafia de Asfalto”, e por mais que quisesse por em palavras todas as impressões e emoções que este livro me inspirou, era como se elas não viessem. E isso não por ser um livro ruim, sequer mediano: o texto de Alan é extremamente envolvente, cheio de nuances que vão da mais funda tristeza até a mais doce alegria, e perante tudo isso, fica realmente difícil de elencar frases que possam representar um pouco do que eram as idas e vindas do autor, começando sua vida de universitário, entre Leopoldina e Ouro Preto. Como prometi que faria uma espécie de resenha do livro, cá estou eu, pondo finalmente em palavras tudo o que as palavras dele me trouxeram… Escrevo aqui um pequeno resumo de um universo, é bom que saibam.

“Caligrafia de Asfalto” é um livro de contos não-linear. A única marcação clara de tempo está no momento de chegada e, talvez, na última partida, quando nosso eu-lírico (sim, uma prosa poética) finalmente pega suas lembranças e malas e volta para casa. Há marcas temporais bem mais sutis, no entanto; elas residem no amadurecimento que fez de nosso companheiro de viagem ir de um garoto extremamente curioso até a forma de um homem. Um homem jovem, mas mais sensato, capaz de lidar com questões sufocantes e inacabadas, tomadas especialmente na forma de um relacionamento que se desfez diante da incompetência do outro em crescer. É notável como o “personagem” (se podemos deixar nesses termos) passa por diferentes estações de sua vida, com um relato tão finamente escrito que nos faz sentir o que ele sente. Ler “Caligrafia” é estar na presença desse suposto “Alan”, ser seu amigo, seu confidente, e isto cria um sentimento de empatia que por vezes nos faz querer abraçá-lo, pô-lo no colo ou simplesmente fugir desse mundo barulhento até um ponto de pleno silêncio, de paz. O eu-lírico nos convida de modo gracioso a percorrer suas diferentes trilhas, fazendo com quem sintamos amor, resignação, tristeza e raiva, raiva de gente que não sabe ir para frente… Até nós mesmos, em nossos defeitos mais dementes.

E uma das coisas que mais embala a viagem de Alan, e consequentemente a nossa, é a música. Há referências concretas a uma sorte de canções e artistas, em especial mulheres, as quais são extremamente familiares a quem goste do lado mais confessional da força. Enquanto a jornada começa ao som de Hand In My Pocket, música de uma jovem Alanis Morissette que procurava sua voz entre gritos, frescor e pontos fracos, ela vai se firmando entre outros mundos. Um deles é o de Tori Amos, que adentra de forma quieta a história de nosso amigo e se faz presente mais em momentos do que em referências. Bem dizer, o sentimento de resgate e perda, de ir em frente e ter de deixar (ainda que temporariamente) pessoas amadas em nome de um futuro, é algo que permeia o livro, assim como permeia Gold Dust, obra-prima desta cantora e compositora. Há ainda a doçura de Bouncing Off Clouds aqui e ali, bem como um pouco do ferrão e do mel das abelhas sendo sentidos por todo lugar… “A Apicultora”* pode se encaixar muito bem no caminho de nosso amigo. Alanis ainda retorna, num momento mais maduro, para ajudá-lo a superar suas decepções amorosas. “Day one, day one”… Uma hora todos temos de começar de novo, e isto brilha em “Caligrafia de Asfalto”: a sensação de que é possível sim recomeçar. “Star over again”.

Outro aspecto surpreendente, talvez o mais virtuoso do texto de Alan, o escritor, é a forma como o sexo é abordado. Se no começo ele é marcado por uma urgência adolescente, evolui para estar completamente atado ao amor, dando à sexualidade um estatuto sagrado. Todas as metáforas, as cenas descritas, as imagens criadas são coloridas, mas num tom suave, tom que suscita até compaixão. Compaixão pelo outro, pela vontade de fazer o outro feliz, compaixão no prazer que vem de ao outro dar prazer. E assim não fica difícil de ter uma quedinha pelo eu-lírico, ou ao menos pela forma como ele ama. É notável como ama, como faz amor, faz amar… Um dos contos, em particular, retrata o que falo: “Beija-flor”, no qual o ser amado é comparado ao pássaro no momento em que estão juntos, e disso surgem notáveis desdobramentos.

Existe uma quantidade infinda de outros contos e trechos do livro que poderia citar como incríveis, de tirar o fôlego, mas gostaria de dar destaque a somente mais um nessa pequena resenha que escrevo sobre “Caligrafia de Asfalto”: o texto da peça “Promete que Jura?”, montada para a VII Semana de Artes da UFOP e ganhadora de vários prêmios no evento. É simples, preparado para dois personagens e um locutor, mas profundamente tocante justo em sua simplicidade. É sobre o nascimento de uma paixão, uma paixão quase infantil, cheia de dúvidas que vão sendo aos poucos sanadas pela doçura e vontade do casal em crescer juntos. Uma das coisas mais gentis que já li em minha vida, e devo admitir que a emoção não se aguentou e caiu pelos meus olhos ao terminar de ler esta pequena pérola. É uma pérola.

Por fim, gostaria de apontar outro aspecto delicioso da leitura deste livro: ele é fácil, fácil de ler, mas nem por isso menor ou – pejorativamente – ingênuo. Toda vez que o li praticamente foi “devorando”, uma vez que cada página, cada capítulo, cada palavra instigava à próxima, fazendo com que o final chegasse como uma brisa, pela naturalidade que percorre todos os caminhos que nosso agora amigo seguiu. Existe algo na escrita de Alan Villela Barroso que torna a vida mais válida; através de suas histórias, sejam elas reais ou fantasiosas, leais ou fantasiadas, é possível resgatar o sentimento, a vontade de estar perto, o desejo de abraçar e ser abraçado por aqueles que tanto amamos mas, vez em sempre, esquecemos. “Caligrafia de Asfalto” merece ser lido e relido, e relido mais uma vez, para que sintamos desejo de vida.

Desejo de uma vida mais bonita.

* “A Apicultora” é uma tradução livre para o título de um disco de Tori Amos, “The Beekeeper”.

Passamento

escolhas

Desfazer um laço. Romper. Desatinar o nó.
Separar, devolver, dividir.
Distanciar e perder contato.

Inexistir-se.

A dor de dois corpos que se dividem não tem mensuração.
Uma constante ausência das coisas,
Uma certeza de falta.

Agora, vivia os dias calados,
Passava o café e bebia,
Fumava um cigarro,
Pensava no tempo.

Sentia falta.
Sentia alívio.
Sem
Ti.

(Escrito em 2016).

Cortesia

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Sempre ensinado a ser educado, gostava de cortejar e cumprimentar as pessoas que via, dando “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”, dependendo “ôpa” e,  até mesmo, “bença”.

Todas as vezes ao sair de casa, fosse para ir à padaria na pracinha da Bandeira ou comprar maizena no armazém, fazia apreço em cumprimentar os senhores e as senhoras sentadas nas varandas ou debruçadas nas janelas ao longo da Vinte e Sete de Abril, além dos conhecidos, os semi desconhecidos, as Cidas e os Cidos.

Lá ia, descendo a rua e dando “bom dia, Dona Tota”, “boa tarde, Dona Dina”, “ôpa Cipó”, “tudo bem  Penha? “, “olá seu Zé!”, “oi Dimar”, “Tudo bom, Marlúcio?”.

Na volta para casa, realizava o mesmo curto e rápido trajeto. Geralmente, reencontrava todas as pessoas que havia acabado de cumprimentar. Muito educado, achava errado dar “olá” somente na ida e passar indiferente no trajeto de volta. Assim, sorridente, cumprimentava todo mundo novamente, independente se a pessoa preferia passar despercebida.

É que, “ingênuinamente” doce, lhe carecia malícia para compreender que nem todas as espécies de pessoas se alegram com “bom dia”.

Gato Castrado

janela

Quando retornou para Leopoldina, após quase dez anos em distância, montou definitivamente o novo escritório: um confortável cômodo em sua casa de nascença, que possuía o que todos os outros escritórios que já teve, em tantos outros cômodos de tantas outras casas onde já morou, não possuíam: uma janela com vista para a rua.

Observando concentrado, percebia o movimento dos carros e das pessoas passageiras. Aquela abertura na parede seria, portanto, o refúgio de seus olhares.

Trabalhava todo dia, sentado na cadeira e de frente para o computador, computando muitas coisas importantes, mas sem muita importância. Enquanto computava, admirava a rua passar. Os gatos, curiosos, assistiam ao movimento pela janela, faziam amizades com quem passava e,  no decorrer dos dias, conheceriam mais pessoas do que jamais conheceria. Quando os três se sentavam juntinhos na janela, quem presenciava comentava admirado: “olha lá os gatinhos, que lindos!”.

samuel

Do outro lado, na rua, quem passava e olhava pela janela via apenas seu cabelo, sempre amarrado em coque, muitos não souberam se era homem ou mulher. Diferença não fazia e também não se incomodava. Preferia a satisfação e alegria que sentia toda vez que alguém dava um carinho gratuito para seus gatos. dudu

 

Computando eternamente em devaneio, passou os dias em ânsia, desejando possuir um bom dono que possuísse, também, uma janela com vista para a rua.

Quem lhe dera ser um belo gato castrado e tratado.

juju

 

 

Quarto Crescente

annamiro                                           annamiro                                              annamiro

Este ano Eu faço 30 anos.
Sempre imaginei como seria ter 30 anos.
Ser um Ser com 30 anos.

São 3 décadas.
São 3 vidas,
Até aqui.

Tive 3 de mim,
Crescendo dentro de mim.

Assim,
Gestei por 10 anos
O Meu Eu Primeiro.
Depois por mais 10 anos
O Meu Eu Segundo.
Este ano faz 10 anos de gestação
D’O Meu Eu Terceiro.

A soma das 3 vidas
Desses 3 Seres Evolutivos
Que formam O Eu Que Sou Agora,
O Eu Que Me Tornei,
Ao longo de 3 vidas,
Ao longo de 3 décadas,
É responsável em gerar O Novo Eu.

O Eu Melhor
O Eu Maior
EU.

O parto está marcado para 11 de agosto,
Dia em que inicia Lua Nova,
Anunciando,
Pôr fim.
Vida
Nova.

Americanas da Zona da Mata

annamiro

Não se soube da parte de quem, mas da Côrte às províncias, espalhou-se a notícia de que a cidade de Leopoldina seria agraciada com a construção de um prédio em uma de suas principais ruas, com o intuito de ser edificada uma Lojas Americanas. O boato, das bocas aos ouvidos, vagarosamente interrompeu o cotidiano dos moradores da cidade, arrematados com a pomposa novidade.

Desencadeou-se, assim, um enorme alvoroço no Largo do Rosário, onde dezenas de pessoas desinformadas procuravam entender o que poderia ser uma loja americana. O consenso geral dos mais informados concluiu que a loja seria uma alavanca para o progresso em nossa sociedade, democratizando o acesso às inovações e tendências provenientes do primeiro mundo.

De imediato, houve um rebuliço na imprensa. A tipografia do jornal O Leopoldinense empenhou-se para encontrar as fontes que espalharam os boatos, dedicando-se totalmente à causa pública e social, confirmando com exclusividade a veracidade das informações dias depois. Em nota, afirmou que graças aos esforços de senhores verdadeiramente comprometidos com o desenvolvimento econômico e social de nossa cidade, Leopoldina fora agraciada com a organização de uma comissão encarregada para a edificação de uma Lojas Americanas. Ouviu-se dizer que a cerimônia de assentamento da Pedra Fundamental está prevista para ocorrer em breve. Demonstramos apreço e apoio à inestimada iniciativa de cidadãos tão obstinados e aproveitamos para ressaltar aos assinantes deste jornal que o pagamento das assinaturas atrasadas podem ser realizadas diretamente em nossa tipografia, na Rua do Rosário, nº 37.

O início das obras despertou a atenção dos curiosos que se amontoavam na Rua Municipal, admirando a edificação das estruturas. O expresso chegava no Largo da Estação carregado de ferro fundido, anunciando abundância e prosperidade de anos vindouros. No Theatro Alencar, a Companhia Dramática Escudero, da atriz Amélie Escudero, oferecia o drama em 3 atos Supplicio de Uma Mulher em benefício às obras da Lojas Americanas.

Houve grande concorrência de público disputando os assentos da plateia na noite do benefício. As publicações do inédito folhetim As Americanas, de Elysio Baltazar, prendiam a atenção dos leitores assíduos do jornal O Leopoldinense, dividindo espaço com as Notícias em First Hand, anunciando as grandiosas novidades que seriam expostas na Lojas Americanas: arnica montana, costaneiras, cartas de ABC, papel sem fim para engenheiros, coagulina para grudar louça, bocetas christofle para rapé, pomada de família, papel de luto, cartas de enterro, folhinha de desfolhar, calendário perpétuo, bálsamo homogêneo sympathico, entre tantas outras estonteantes invenções oriundas da América que brevemente chegarão na cidade da Leopoldina, nada além de 2000 réis.

O tão aguardado dia da inauguração levou a população às ruas da cidade que acompanhava, ao som da apresentação musical da Lyra Leopoldinense, o cortejo iniciado no Largo do Rosário com destino à Rua Municipal. Outro cortejo partia do Largo da Gramma, acompanhando a cavalgada e as acrobacias mortais dos grandes artistas do Circo Casali, em temporada na cidade.

A expectativa para a abertura das portas causava empurrões e pisões entre aqueles que disputavam espaço na multidão formada em frente à Loja. Nas arquibancadas imperiais, dispostas com elegância e privilégio, verdadeiros cidadãos da aristocracia leopoldinense observavam o espetáculo, entre cumprimentos e mesuras em english, a língua inglesa. Dizam hello, how are you?, nice to meet you, wonderful day.

As três portas foram abertas pontualmente ao meio dia daquele dia, horário anunciado pelo sino da Catedral de São Sebastião. Todos correram. Ouviam-se exclamações e afirmações de êxtase e alegria entre os corredores e prateleiras enfileiradas, exibindo as inovações tecnológicas à preços de aguçar os sentidos. No meio ao tumulto e frenesi desencadeado, a pequena e irrelevante inscrição Made in China, contida no fundo das embalagens, passou despercebida aos olhos dos desatentos. Ao fim do ato, todos foram embora, orgulhosos e extasiados, segurando suas caixas e sacolas.

A inauguração da Lojas Americanas definiria um período de avanço econômico e social para Leopoldina, graças ao aumento do fluxo turístico e a circulação de moeda na região, dando à cidade o título, jamais esquecido, de Americanas da Zona da Mata. Os anos de prosperidade seriam drasticamente interrompidos com a arrebatadora crise econômica internacional que atingiu em cheio o Brasil, ocasionando a grande queda nas exportações e o drástico aumento dos preços das safras de café. A decadência da cafeicultura e a seca na lavoura seriam responsáveis pela desativação da Estação Ferroviária de Leopoldina e o fechamento de estabelecimentos comerciais.

Em meio à inseguranças e incertezas, a Lojas Americanas despediu-se da cidade, fechando suas portas definitivamente. Apesar das diversas tentativas de tombamento patrimonial, o histórico prédio caiu no vazio do esquecimento, cedendo seu espaço, décadas depois, para a Igreja Universal do Reino de Deus. Os cultos ocorrem de segunda à domingo, a partir das 18h00.

(Crônica escrita em 2017 e desengavetada agora, mais ou menos um mês após a inauguração oficial das Lojas Americanas aqui na cidade de Leopoldina).

Fev.

annamiro

Era final de fevereiro daquele ano, regido por Oxalá e Yemanjá. Diziam que a passagem do tempo seria devagar, mas haveria constantes mudanças. De fato, todos precisavam de um ano mais lento, para ver se o coração conseguia aquietar, e de mudanças bem vindas para fortalecer o Orí, dando constância e sustentação para se re-viver este outro ano, novamente, de novo, um dia após o outro.

Enquanto seu vigésimo oitavo mês de fevereiro chegava ao fim, ele não desconfiava que alguma coisa muito além do que já conhecia, que havia presenciado ou vivenciado durante os outros vinte e sete fevereiros anteriores de sua vida, pudesse vir acontecer.

Estava errado, porque em ano regido por Oxalá e Yemanjá há de se esperar que alguma coisa aconteça.

 

 

Caderneta

annamiro

A partir do momento que deixei Leopoldina, passei a colecionar passagens. Bilhetes. Um pedaço de alguma coisa que servisse de recordação pelos lugares onde havia  passado.

Eram muitas passagens de ônibus, que acumulei rapidamente quando iniciei os estudos na universidade. Acabei criando um caderno de viagem. Era uma caderneta escolar bem simples, 102x140mm, 17 pautas, 200 folhas, da Tilibra. Me lembro de treinar espanhol com as especificações técnicas: “libreta, tamaño, hojas internas”. Achava chique.

Sempre fui muito precavido e, naquela época, a tecnologia não era rápida como hoje. Vivíamos em uma era tecnológica, mas que levaria tempo para ser instantânea.

Então anotava no caderninho todos os trajetos e horários possíveis, caso viesse a acontecer um imprevisto na viagem. Caso perdesse o ônibus, ou fosse raptado, enfim. Era muito útil, com telefones úteis e rascunhos grampeados, contendo informações manuscritas pelos atendentes rodoviários.

Eram diversas passagens, distribuídas e grampeadas em folhas, contendo as principais informações: trajeto detalhado, horários, valor da passagem, data de saída, de chegada.

No caderninho, escrevia sempre que possível. Era um caderninho de viagem, então eu deveria escrever enquanto estivesse viajando. Iniciava quando fechava a porta de casa. A partir daí, qualquer coisa poderia se tornar relevante e cair em anotação.

Ainda tenho o caderninho, que está aqui comigo. Resolvi trazê-lo para perto, já que estou falando dele. É um caderno sagrado, não ouso falar pelas costas.

Com ele presente, quem sabe nos dê permissão para o abrir? Poderia flolhear em busca de algo relevante para contar, com bastante cautela e compreensão de que seria apenas uma história (ou outra), tornando a tarefa ainda mais difícil.

Com a permissão concedida, abro o caderno.

Onze de outubro

20:50 – Ubá x Viçosa

Esperei Tiago na rodoviária. Ele é ótimo, seus amigos também. Encontrei a Carla. Vi o Fabrício, tomamos café e cappuccino, depois almoçamos juntos.

Tiago me deu bombons e uma rosa. Nunca me deram nada assim. Saí de Viçosa 12:40. Cheguei em Ouro Preto 15h30.

Anotava as coisas para guardar na memória, deixar como recordação. Imaginava que seria bonito reler anos depois. Essa foi uma boa viagem, apesar de não me recordar da Carla. Pressiono a memória, mas nenhum sinal de quem seria Carla e o que fizemos aquele dia. Sinto-me envergonhado por não recordar, pois Carla está no caderno. Está anotado. Ela foi significativa para mim.

Querida Carla,

sinto muito não me recordar de você. Acredito que vivemos bons momentos, em Viçosa, ou alguma cidade que estava em meu caminho. Não tenho certeza, mas provavelmente tomamos café, você fumou um cigarro, te incodomava a fumaça que saía do cigarro, então você abanava o tempo todo. Ficamos uns quarenta e cinco minutos conversando sobre o que fizemos da vida desde o nosso último encontro e, mais quarenta e cinco minutos indagando sobre o presente e o futuro. Andamos pela cidade, havia uma certa resistência de sua parte em me olhar nos olhos, não sei se recorda. Enquanto descíamos o calçadão, imaginava o que poderia ser. Depois de tantos anos de amizade, a distância parecia ter modificado algo entre nós. Sentia isso silenciosamente, enquanto lambia meu picolé. Estava calor, você decidiu comprar sorvete. Pedi um picolé. Gostava de morder aos pouquinhos. E você observava isso com atenção. Eu mordendo com cuidado, por causa do gelado, as beiradas do meu picolé, que já não me recordo o sabor. Talvez amendoim. Você me ofereceu um pouco do sorvete, mas recusei. O picolé já me bastava. Senti seu desapontamento. Então eu disse “me dá um pouquinho”. Você, sorrindo, veio com a colher cheinha na minha boca, muito sorvete, acho que você fez de propósito. O sorvete me gelava todo por dentro, enquanto escorria pelo meu rosto. Rimos disso, eu estava todo melado. Quando nos despedimos, prometemos que nos veríamos em breve. Lembro que você estava muito feliz, espero que esteja mais feliz ainda. Desculpe a ausência e o silêncio durante todo este tempo. Gostaria de ter escrito algo mais significativo em meu caderno, além de “encontrei a Carla”. Você é boa demais para merecer uma citação rápida. Sinto saudades. PS: Caso leia o que escrevi algum dia, entre em contato. Já sinto ansiedade e insônias profundas para saber quem você é, o que fizemos aquele dia e o que ainda poderemos fazer.

Caligrafia de Asfalto – Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2012.

Amigos leitores,

este blog virou livro, e se chama “Caligrafia de Asfalto”, lançado em outubro pela Editora Multifoco. O lançamento ocorreu em Ouro Preto, MG. Mas se voce é de longe, ou de perto, mas perdeu, já é possível comprar pelo site da editora. O link segue abaixo:

https://editoramultifoco.com.br/loja/product/caligrafia-de-asfalto/

Bem, e vamos escrevendo para uma segunda publicação.

🙂

tudo nesse meio tempo

Foto e Texto: Alan Villela

 

Dei um tempo de tudo

porque tudo nesse meio tempo todo
foi tão pouco
e tão pequeno
que nesse meio tempo que passou
eu te vi,
você me viu,
mal nos olhamos,
não nos falamos,
e deixamos assim:

tudo nesse meio tempo,
que existiu,
e que fingimos que não aconteceu,
para ser um meio tempo em nossas vidas que passou…

porque se eu tivesse todo o tempo de tudo,
esse meio tempo todo seria tão muito
e tão grande
que eu teria te olhado
e teria te falado
para não deixar nosso meio tempo passar.

made in sônia.

Foto: Moaxir. Texto: Alan Villela.

Ouro Preto, madrugada de 15-09, 03h47.

Estou com algumas dificuldades para dormir, já faz uns dias. Amanhã preciso acordar cedo. Não estou conseguindo cair no sono e, assim do nada, comecei a pensar em você. Faz muito tempo que não nos falamos, então resolvi te escrever, espero que não se importe.

Eu queria contar algumas coisas para você saber como anda a minha vida. Hoje estou com 23 anos, ainda morando em Ouro Preto, por pouco tempo, 8° período. Trabalhando, dando aulas para crianças e para idosos, uma gostosura.

Agora tenho um gato. Ele se chama Samuel e está aqui do meu lado com cara de sono, provavelmente querendo saber quando eu irei desligar essa luz. Mas o problema é que, por mais que eu queira, essa luz não se apaga e, infelizmente, é essa luz que, de quando em vez, me traz escuridão. Então estou te escrevendo, desejando que você escureça junto comigo, pelo menos um pouquinho, menino, que escureça, que perca o sono a noite toda e acorde amarrotado para ir trabalhar, porque você fechou o olho para dormir, mas se esqueceu de fechar o buraco que abriu.

Aí ele se tornou meu melhor amigo, o Samuel. Branco com manchas caramelo, me responde toda vez que eu pergunto algo a ele. Deita no meu peito, me lambe e rola no tapete e no final da noite, se encaixa no meu corpo pra poder dormir comigo.

Eu preciso ir dormir agora, se você puder deixar. Sei que não foi sua intenção me fazer perder o sono hoje, mas te escrever foi a forma que encontrei para conseguir dormir. Gostaria de te enviar essa carta pelo correio, mas não sei mais onde você mora, qual o seu endereço, com o que você trabalha e se você está bem. Mas eu sei que, um dia, você vai vir até aqui, ler essa carta sabendo que é especificamente para você. Poderá até achar patética a minha insistência em te escrever, é que meu glossário é muito diversificado e ainda não esgotaram minhas palavras. Eu não me sentirei envergonhado caso você pense algo assim de mim. Te escrever é a única forma de conseguir te deixar ir embora, porque o que mais me incomoda não é a distância,

não é a falta,

não é o silêncio.

É a presença.

Um beijo.

A.

Promete que Jura? – Peça Teatral

Montagem apresentada na VII Semana de Artes da UFOP no dia 27 de maio de 2011 na sala 35 da Escola de Minas em Ouro Preto, Minas Gerais.

Levou os seguintes prêmios:

– Melhor Montagem – Júri Popular
– Melhor Texto Original
– Melhor Figurino
– Melhor Iluminação

Direção e Dramaturgia: Alan Villela
Atuação: Leonardo Oliveira, Maria Gabriela Felipe e Nataly Bentley
Música: Matheus Ferro
Execução: Laís Garcia
Iluminação: Luis Felipe Pereira
Maquiagem: Jairo Alna
Cenografia e Figurino: Alan Villela
Instalação Externa: Gabriel Edeano e Jorge Pessoa

Promete que Jura?

Foto: Lis e Alan – Texto: Alan Villela

 

– Tônio, é verdade que amar dói?

– Ai, e eu vou saber? Donde você tirou isso, criatura?

– De um livro de amor!

– Mas você já amou alguém, Chica?

– Ah, Tônio… eu acho que não sei.

– Acha que não sabe?

– É! Acho que não sei!

– Mas como acha que não sabe? Ou você acha, ou você não sabe!

– É que eu não sei se eu sei, então é acho que não sei!

É… faz sentido.

– E você, Tônio?

– Eu o que?

– Você já amou alguém?

– Ai, Chica! Oxe! Eu acho que… também não sei!

– Acha que também não sabe?

– É Chica! Acho que também não sei! Mas você é muito complicada! Diaxo, só sabe fazer pergunta difícil!

– Não é a pergunta que é difícil, Tônio! A resposta que é!

– Mas você também só sabe querer resposta difícil!

– Mas se a resposta fosse fácil, não seria nem preciso perguntar, você não acha?

– É… faz sentido!

– Chica, você acha que dói demais?

– Dói o quê?

– Amar, Chica!

– Ai, depende do tipo de amor!

– Ixe! Mas essa agora? E desde quando amor tem tipo?

– Desde sempre, ora!

– E qual tipo de amor que tem?

– Ah… tem amor de tudo que é tipo… tem de… da… ixe! Mas que você também só sabe fazer pergunta difícil, Tônio!

– Não é a pergunta que é difícil, Chica! É a…

– Eu sei! É a res-pos-ta!

– E você acha que tem remédio, Tônio?

Remédio pra quê?

– Pra dor de amor!

– Oxi! Deve ter! Remédio pra coração, né?

– É! É mesmo! É remédio pra coração! O seu Juca, primo da tia Ritinha, vivia tomando remédio pro coração dele! Só que aí, um dia, deu ataque e ele morreu… de tanto amar! Deve ser tão bonito morrer de amor!

– Ixe, Chica! Vire pra lá essa boca!

– Mas o que é que tem Tônio? Tem tanta gente que morre de coisa feia! Morrer de amor deve ser até feliz, você não acha?

– É… faz sentido!

– Mas você não tem medo não, Chica?

– Medo de quê?

– De morrer!

– Morrer de quê?

– De amor, Chica!

– Ah, Tônio… eu sei não! Me disseram que o seu Juca morreu tão rapidinho que ele nem notou que estava morrendo.  Foi Pá-Pum! O meu medo é de sentir dor. Por isso te perguntei que se amar dói.

– Mas, afinal de contas, pra que você quer saber de tudo isso?

– Ah, Tônio! É que já faz um tempo que eu to querendo te amar, mas eu não quero ficar me doendo!

– Oxi, Chica! É sério?

– É sim!

– Então não se avexe não! Porque outro dia eu vi na telenovela um ator dizendo que “o amor cura tudo!”. Se você me amar, eu vou te amar também. Se teu amor te doer, você fique tranquila que eu pego o meu amor e te curo da dor!

É! Faz sentido! Faz todo sentido, Tônio!

– Mas você promete que vai me amar, Chica?

– Eu prometo!

– Então promete que jura!

Prometo que juro!

– E você? Promete que vai me amar, Tônio?

– Eu prometo!

– Então promete que jura?

– Prometo que juro!

É Verdade.

Foto: 1990’s – 2000’s – Texto: Alan Villela

(Essa pode até ser uma história boba, mas eu gosto de ser bobo.)

Verdade.
Verdade?
Verdade.

É verdade que você tem medo de viajar de ônibus?

É um pouco de verdade. Anos atrás era um problema maior, mas hoje em dia eu venho me acostumando. Desde que me mudei daqui, precisei pegar vários ônibus, e há algo de confortável em estar na estrada ao redor de pessoas que você não conhece, mas estão ali por algumas horas e sabe-se lá se um dia você irá reencontrá-las, ou não, e reconhecê-las, ou não, e se há algum propósito delas estarem ali contigo, ou não.

Verdade.

É verdade que você está mais feliz lá do que aqui?

Não sei. Eu acreditava ser, no início, quando tudo ainda era novo, parecia aniversário todo dia, primeiro dia de aula todas as manhãs. Era como se, a cada dia, houvesse presente novo para abrir, rasgando o papel e abrindo a caixa de olhos fechados, prolongando ainda mais a surpresa. Mas hoje, eu não sei. Parece que sempre vai faltar alguma coisa, independente de onde eu esteja, independente do que seja, porque essa falta a gente nunca sabe o que é, só sabe que falta.

Verdade.

E você? Está mais feliz lá do que aqui?

Não sei. Eu consigo ser feliz aqui e lá, de formas diferentes. Aqui é uma felicidade confortável. Não preciso me preocupar tanto para conseguir ser feliz, ela já vem cuidadosa, vem protegida e eu sei que ela sempre virá. Mas lá, lá é diferente, é uma felicidade conquistada, eu preciso levantar da cama e sair de casa para conseguí-la. É mais difícil ser feliz, mas quando se é, se é com gosto, se é com fome de quem come o máximo que couber na boca, porque quando não se é, não se é, e então você sente aquela dor de nada na barriga.

Verdade.

É verdade que você ainda tem nossas cartas?

Cada uma delas, guardadas dentro de um envelope grande escondido na gaveta do armário por baixo de uns livros.

Verdade.

É verdade que você tem as minhas?

No meu armário de roupas. Já senti vontade de vesti-las, mas então todos saberiam o que você me escrevia. Na verdade, eu gostaria que soubessem, mas há consolo em mantê-las em segredo.

Verdade.

É verdade que você se arrepende da gente?

Não. E você?

Eu não. Só me arrependo do que perdemos e dessa barreira que ganhamos. Nós não nos encostamos mais.

Eu poderia encostar em você agora.

Eu sei que você poderia e você sabe que eu quero, mas isso seria uma violação da conduta que estabelecemos silenciosamente para conseguirmos nos relacionar novamente, depois de todos esses anos.

Agora são onze horas, é hoje que termina o horário de verão? Poderíamos ficar encostados até a meia noite em ponto, então voltaria a ser onze horas novamente. Será como se nada tivesse acontecido.

Teoricamente sim, eu acho, mas isso não seria verdade e haveria consequências.

Talvez seja esse o propósito da brincadeira, optar entre a verdade ou se arriscar na consequência.

Verdade.

É verdade que você prefere consequência?

É verdade.

Consequência.

Pedágios

Foto: Tirada por Ana Camila,  oferenda para Yemanjá, Salvador, 2011.
Texto: Alan Villela

Ele ainda está por aí, mandou avisar para quem interessar possa, que está aí escondido em algum lugar e que, se você esperar mais um pouco, logo ele vai reaparecer.

Diz ele, não sou eu quem está dizendo isso, que, nada não, melhor deixar como está, que, espere aí, ele disse que era para falar, mas eu acho que prefiro deixar estar, isso sou eu quem está dizendo, que, afinal de contas, o que aconteceu de verdade para ele ter ido embora assim tããão inexplicavelmente?

Ele me mandou te contar que foi embora porque, acho que não sei se devo, acho que não sei se vou, mas ele me deu certeza de que vai reaparecer, na sua vida, de uma forma cabulosa que você não irá esperar, e assim, não esperando e ele reaparecendo, repentinamente inocentemente e inexplicavelmente, da mesma forma com a qual o fez ir embora, você vai, você vai, você vai querer ir embora também, seja lá para onde for, pagando por cada pedágio que você o fez pagar.

Célula Morta

Foto: Meu quarto na “Roda Viva” por Tiago Marinho.  Texto: Alan Villela

Você me assombra como um fantasma e ri da minha cara de criança assustada correndo para o canto da sala, mas não tem jeito de esconder, você me pega pelas costas e quebra as minhas pernas bem devagarzinho, com jeitinho e cuidado para eu não sentir tanta dor.

Eu seguro o choro, firme e forte, me levanto e recomponho ajeitando meu retilíneo uniforme amarrotado e me vou embora mundo afora assobiando pela rua sem olhar pra trás para sua cara gorda linda esplendorosa que eu queria tanto bater que eu queria tanto acariciar mais uma vez, qualquer dia, e eu sei, eu sei que sei, muito bem sei que esse dia vai chegar, tarde ou cedo, seja pra bater, seja para acariciar, me contento com qualquer coisa seu encosto malcriado sem educação peso de papel macumba de esquina enfarto lepra aneurisma na minha cabeça célula morta enraizada no meu couro cabeludo, me machucando me machucando me machucando e puta merda, como eu gosto de sentir dor.

Cobertor

Foto e Texto: Alan Villela

Eu cheguei aqui domingo.

De segunda para sábado o chuveiro explodiu três vezes. Parece mentira, logo eu que tomo uns três banhos por dia.
Uma explodida por banho.
Desloquei o pé enquanto tentava arrumar. Parece sacanagem, logo eu que ando por essa cidade feito um louco.
Ando mancando.

Me disseram que as férias destroem aquilo que o amor constrói.
Verdade ou mentira, estou com saudade de mim debaixo do seu cobertor bicolor.
Deve ser isso. Preciso comprar um cobertor novo que esses dias aqui estão mais frios e sozinhos.
Enquanto isso, vou mancando do quarto para o banheiro, tomando banho gelado e me cobrindo com meu cobertor de cor única.

Quarentena

Foto de Rodrigo Ladeira. Texto de Alan Villela

Que fato estranho, essa coisa engasgada e engraçada de não sei bem exatamente o quê e nem bem sei exatamente aonde,
mas que ronda por aqui em algum lugar, feito gato pingado.

Três e quarenta da manhã e o nariz escorrendo a rodo,
a cachorrada lá na rua brigando no cio e essa coisa aqui dentro martelando faz um tempo,
essa coisa que martela,
aqui dentro,
essa coisa que martela,
disparando o alarme da gente,
e eu finjo que não sinto e não escuto,
me fazendo de besta e de burro,

então eu digo pra todo mundo que é alarme falso, não entrem em pânico,
e vou trancando as saídas de emergência novamente,
pra ninguém sair,
pra ninguém entrar.

me fazendo quarentena,

pra ninguém poder sair
e pra ninguém conseguir entrar.

Epifanias

Foto e Texto: Alan Villela

Prego laranja no pé de cacau
Ajeito o colete, acendo o cachimbo e coloco o chapéu.
Jogo bola, sou judeu, meu pescoço é bigodudo,
uso pente sem dente pra maracajá meu buxo.

Vatapá bosta na areia,
pois pimenta na orelha abaeté meu peito canastra.

De boné, chifre e coleira,
um vidro gigante de canela e cheiro de vinagre,
lá eu ia, bahia, hasteando na barriga a minha bandeira pela praia.

samba meu

Foto e Texto: Alan Villela

O Brasil ganhou e hoje eu aprendi a sambar.

E fiz do meu samba não apenas mexer os pés, descompassado.

Foi preciso balançar os ombros,
fechar os olhos,
esticar meus braços e fazer um carnaval,

arremessando confete na cara feia do povo,
arrebentando a pista
e levantando a vida, para ela não te abaixar e sambar todinha em cima de você.

“pra nós todo amor do mundo,
pra eles o outro lado,
eu digo malmequer”

Se você viesse.

Foto e Texto: Alan Villela

(Para Breno)

– Me conta?

– O quê?

– O que você pensa que aconteceria se viesse aqui agora.

– Eu penso que eu irei bater na sua porta, olharei ao redor, se houvesse um olho mágico eu o tamparei com o meu polegar e respirarei fundo.

– E o que mais?

– Depois eu penso que você me convidará para entrar. Eu entrarei com passos pequenos e as minhas mãos pra trás, juntas. E eu olharei ao redor, com vergonha e você falará comigo e eu responderei olhando pra baixo e arriscarei te falar nos olhos alguns segundos, mas não conseguirei, aí olharei pro lado e fingirei me interessar por algum porta-retrato ou detalhe da casa, e eu ficarei olhando fixamente para ele enquanto nós criamos um diálogo despretensiosamente inocente e sem aparentar vergonha.

– Continue.

– Você me mostrará a sua casa, e eu imagino que ela tenha uma salinha, uma cozinhazinha e um quartinho com banheiro. Eu entrarei em seu quarto e fingirei me encantar por ele, caso ele não me encante. Mas se eu me encantar, encantarei-me de verdade e te falarei que meu encanto é verdadeiro, já que eu te confessei que poderia forjar meu encanto. Eu sentarei na sua cama com as mãos no colo, talvez para trás, esticadas no lençol, aparentando, mais uma vez, não estar sem graça nessa situação. Olharei cada detalhe de seu quarto, buscando coisas em comum entre nós dois. Se houver livros serão as primeiras coisas que me chamarão a atenção, logo em seguida eu olharei os seus CDs, se você os tiver, e depois as fotografias, e começarei algum diálogo meio aleatório sobre o como-eu-me-lembro-de-você-naquele-almoço-que-você-estava-com-o-boné-bege, e essas coisas, demonstrando, mais uma vez, inutilmente, não estar com vergonha. Sentarei-me novamente na cama, as mãos no colo, os pés cruzados, e nessa hora eu sempre olho muito para os meus pés. Se tiver um tapete embaixo deles eu ficarei super entretido com ele, esfregando a sola do tênis, enquanto você fala alguma coisa pra mim. Em minha cabeça, eu pensarei em um próximo assunto, em uma próxima fuga.

– Continue.

– E talvez você sente do meu lado. Talvez você sente na minha frente, imagino que na cadeira de uma escrivaninha. Se você sentar na minha frente não será tão bom, você poderá olhar nos meus olhos, e eu terei que olhar para os seus também, e eu pensarei comigo que “eu não vou desviar, eu não vou desviar”, então eu não desviarei, mas estarei tenso, batalhando comigo mesmo, dentro de mim, até o momento em que eu não aguentarei e desviarei o olhar e sentirei como se houvesse perdido alguma disputa, e eu acho que você irá sorrir, e haverá conforto em seu sorriso. Mas se você estiver sentado do meu lado será diferente. Minhas orelhas estarão MUITO QUENTES, muito quentes e vermelhas, e as minhas mãos suadas, eu tenho mãos suadas desde quando era pequeno, e isso é algo que me deixa em um nível maior de timidez. Então as minhas mãos estarão sempre juntas, ou esfregadas no seu lençol para tirar o acúmulo, do suor, da vergonha. Nós olharemos para baixo, conversaremos quietinho, e eu sempre rindo, de qualquer coisa que você fale, de qualquer coisinha minúscula que você fale, eu vou rir e vou sorrir com a mão na boca para guardar o sorriso vergonhoso que eu tenho.
E talvez, muito talvez, você me dê a sua mão, e ficarei mais pianinho e paralisado do que antes, mas farei festa por dentro de mim, pois a parte das mãos é a minha parte mais favorita de todas. Eu adoro dar as mãos, é algo tão bonito, é o sinal de quando realmente a coisa está dando certo, aí eu vou levantar a minha cabeça, talvez eu a esconda em seu pescoço, talvez não, mas eu não farei nada, eu sempre penso que não cabe à mim fazer alguma coisa, tomar alguma atitude, eu me sinto incompetente nessa parte da história, não tomar a iniciativa, não dar o passo à frente, e eu queria poder tomar, mas tenho aquela vergonha.
Então esperarei, esperarei, torcendo.
E eu penso que você tomará.
Que você tomará a iniciativa.
E eu estarei feliz de ter tomado coragem.
De ter saído da minha casa às 02h da madrugada.
De ter apertado o 108 e subido as escadas.

– Me conta?

– O quê?

– O que você pensa que aconteceria se viesse aqui agora.

– Eu penso que eu irei bater na sua porta, olharei ao redor, se houvesse um olho mágico eu o tamparei com o meu polegar e respirarei fundo.

– E o que mais?

Depois eu penso que você me convidará para entrar. Eu entrarei com passos pequenos e as minhas mãos pra trás, juntas. E eu olharei ao redor, com vergonha e você falará comigo e eu responderei olhando pra baixo e arriscarei te falar nos olhos alguns segundos, mas não conseguirei, aí olharei pro lado e fingirei me interessar por algum porta-retrato ou detalhe da casa, e eu ficarei olhando fixamente para ele enquanto nós criamos um diálogo despretensiosamente inocente e sem aparentar vergonha.

– Continue.

– Você me mostrará a sua casa, e eu imagino que ela tenha uma salinha, uma cozinhazinha e um quartinho com banheiro. Eu entrarei em seu quarto e fingirei me encantar por ele, caso ele não me encante. Mas se eu me encantar, encantarei-me de verdade e te falarei que meu encanto é verdadeiro, já que eu te confessei que poderia forjar meu encanto. Eu sentarei na sua cama com as mãos no colo, talvez para trás, esticadas no lençol, aparentando, mais uma vez, não estar sem graça nessa situação. Olharei cada detalhe de seu quarto, buscando coisas em comum entre nós dois. Se houver livros serão as primeiras coisas que me chamarão a atenção, logo em seguida eu olharei os seus CDs, se você os tiver, e depois as fotografias, e começarei algum diálogo meio aleatório sobre o como-eu-me-lembro-de-você-naquele-almoço-que-você-estava-com-o-boné-bege, e essas coisas, demonstrando, mais uma vez, inutilmente, não estar com vergonha. Sentarei-me novamente na cama, as mãos no colo, os pés cruzados, e nessa hora eu sempre olho muito para os meus pés. Se tiver um tapete embaixo deles eu ficarei super entretido com ele, esfregando a sola do tênis, enquanto você fala alguma coisa pra mim. Em minha cabeça, eu pensarei em um próximo assunto, em uma próxima fuga.

– Continue.

– E talvez você sente do meu lado. Talvez você sente na minha frente, imagino que na cadeira de uma escrivaninha. Se você sentar na minha frente não será tão bom, você poderá olhar nos meus olhos, e eu terei que olhar para os seus também, e eu pensarei comigo que “eu não vou desviar, eu não vou desviar”, então eu não desviarei, mas estarei tenso, batalhando comigo mesmo, dentro de mim, até o momento em que eu não aguentarei e desviarei o olhar e sentirei como se houvesse perdido alguma disputa, e eu acho que você irá sorrir, e haverá conforto em seu sorriso. Mas se você estiver sentado do meu lado será diferente. Minhas orelhas estarão MUITO QUENTES, muito quentes e vermelhas, e as minhas mãos suadas, eu tenho mãos suadas desde quando era pequeno, e isso é algo que me deixa em um nível maior de timidez. Então as minhas mãos estarão sempre juntas, ou esfregadas no seu lençol para tirar o acúmulo, do suor, da vergonha. Nós olharemos para baixo, conversaremos quietinho, e eu sempre rindo, de qualquer coisa que você fale, de qualquer coisinha minúscula que você fale, eu vou rir e vou sorrir com a mão na boca para guardar o sorriso vergonhoso que eu tenho.

E talvez, muito talvez, você me dê a sua mão, e ficarei mais pianinho e paralisado do que antes, mas farei festa por dentro de mim, pois a parte das mãos é a minha parte mais favorita de todas. Eu adoro dar as mãos, é algo tão bonito, é o sinal de quando realmente a coisa está dando certo, aí eu vou levantar a minha cabeça, talvez eu a esconda em seu pescoço, talvez não, mas eu não farei nada, eu sempre penso que não cabe à mim fazer alguma coisa, tomar alguma atitude, eu me sinto incompetente nessa parte da história, não tomar a iniciativa, não dar o passo à frente, e eu queria poder tomar, mas tenho aquela vergonha.

Então esperarei, esperarei, torcendo.

E eu penso que você tomará.

Que você tomará a iniciativa.

E eu estarei feliz de ter tomado coragem.

De ter saído da minha casa às 02h da madrugada.

De ter apertado o 108 e subido as escadas.